“E quando descem as trevas sobre a nossa miséria, se não dispusermos de pena, nem de graveto, nem de tinta nem de água, ainda assim escreveremos a História riscando com o indicador o ar que respiramos.”
Mário Cláudio
A Mário Cláudio pedi as palavras. E se em vez de História escrevesse Águeda, agigantava-as nas paredes da d’Orfeu.
Quem esteve no Gesto Orelhudo entende. Sabe que o festival atravessou idades, públicos, gostos, artes. Tocou economicistas e intelectuais entre aspas, rótulos com que os dois grupos costumam mimosear-se, inquietou intelectuais sem aspas, aquietou partidários, apaparicou os assim assim, deu trabalho a jornalistas e cronistas (onde estavas, Manel Antunes? E tu, Luísa?), acalorou os que não querem saber de etiquetas para nada, os deslumbrados como eu, os que resistem à chuva, ao calorzinho da pantufa e aos xaropes televisivos.
Trouxe os meus alunos. Os dos primeiros anos, eu menina e moça, os a seguir, os de hoje, a Ana Rosa, a Margarida, a Joana, o Hugo, o Ricardo, o Paulo, o João, e todos os outros, os de todas as letras do alfabeto. E com eles os abraços. Perdoem-me, isto não era para se escrever. E trouxe os nossos vizinhos. Os de Aveiro, os da Holanda, os da Itália, os de Tondela, os dos Açores, os de Casal d’Álvaro, os da minha rua, os das nossas ruas. Trouxe meninos de todas as idades. “É pá, foste ontem ao Gesto Orelhudo?” perguntava, na Praça do Município, um ciclista a quem tiraram há pouco as rodinhas traseiras. O amigo esbugalhou os olhos, aparafusou o ouvido e quis saber. “Hã?” “É pá, não viste o palhaço do combóiinho?” E porque o meu tempo andava a correr, perdi as palavras e os gestos que hão-de ter deixado um gostinho a pena no menino do “Hã?”. Uma pena como a nossa, a saber a pouco, uma saudade de todos os Gestos, que hão-de marcar a fogo a nossa cultura. Um Malhão do futuro.
Entre a magia do começo, da luz e da alma dos mineiros, e o aplauso do fim, a d'Orfeu escreveu Águeda a letras de gigante. E Águeda cantou a sério. A rir. A aplaudir. Com cheirinho a OuTonalidades. Debaixo daquela laranjeira ... de um chão ainda d'Orfeu.
Odete Ferreira