Não há fome que não dê em fartura. É o melhor provérbio que lembro de memória para dizer o espanto com que assisti, numa sala quase vazia, a um dos melhores concertos que se fizeram em Águeda nos últimos tempos. Digo espanto, porque tudo faria crer que o espectáculo de arranque do Junho Jovem 2005 fosse um evento de massas. Apesar de quase gratuito (os bilhetes custavam apenas dois Euros), o concerto dos Berrogueto, um dos melhores grupos musicais da Galiza, teve o aplauso de pouco mais de uma centena de espectadores. No mínimo, inacreditável num país que, há pouco mais de uma década, tinha vergonha da ignorância cultural do seu povo.
Há vinte anos, Portugal era, na verdade, um país totalmente sedento de tudo. Nas estantes dos supermercados faltavam ainda os produtos que praticamente só os emigrantes traziam no Verão quando vinham de férias. Para as universidades iam ainda sobretudo os filhos de famílias de classe média e alta. A RTP era uma paupérrima amostra da televisão que já se fazia “lá fora”. Culturalmente, Portugal era um país de escassos recursos. Fora dos grandes centros urbanos (Lisboa, Porto, Coimbra e eventualmente Braga), a oferta cultural não deixava grandes alternativas aos bailes de salão e às romarias religiosas.
Hoje, porém, todos conhecemos o Kinder Surpresa, a Nutela, o Ketchup, os hambúrgueres do McDonalds, o queijo Philadelphia, as pizzas pseudo-italianas e os cereais de pequeno-almoço. Os municípios também já têm agenda cultural, todas as cidades têm associações dedicadas ao teatro, ao desporto, à música ou a quaisquer outras actividades artísticas. Não faltam salas de espectáculo com qualidade um pouco por todo o país. Pequenas ou grandes, todas conhecem o entusiasmo de uma ou outra colectividade para dominar o palco.
Recardães tem ainda a particularidade de ter um dos melhores auditórios do distrito de Aveiro. No entanto, à juventude, ao profissionalismo e ao sonho de uma cidade modernamente culta, responde-se com uma ausência gélida, de indiferença pelo dinamismo artístico e de visível retorno à ignorância do Portugal de há 20 anos.
Dirão alguns que a escassa afluência a este espectáculo se deveu ao facto de ele acontecer no dia 10 de Junho. Não acredito, porém, que tenham estado muitos aguedenses em Guimarães a comemorar o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, nem tão-pouco que grandes massas se tenham deslocado para umas mini-férias no Algarve. Tenho estado em muitos eventos nas últimas semanas e em todos reparei no mesmo: na ausência generalizada de público. É por isso que insisto na tese de que na cultura é como nas guloseimas das crianças: lembro-me bem do tempo em que os ovos Kinder eram um luxo delicioso a que as crianças portuguesas só tinham acesso quando os amiguinhos emigrados na Alemanha vinham de férias ao país dos pobres; hoje as crianças portuguesas comem ovos Kinder ao pequeno-almoço e o país dos pobres é agora um país de desregrados e fartos.
Tenho pena que o décimo aniversário da d'Orfeu coincida com a cultura da “Quinta das Celebridades”; que à excelência da arte que é hoje possível deslocar a meios quase rurais se prefiram as conversas fúteis de café; que o espírito se sustente com encenações de um novo tribalismo, como o que hoje representa a cultura das discotecas…
A crise da cultura
Madalena Oliveira