Das tuas mãos divinas de Poeta
Herdei a lira que não sei tanger.
in Ode a Orfeu
(Miguel Torga)

Já Conserto. Maio 26. Espaço d'Orfeu, Águeda.
Lembrou-se a d'Orfeu de consertar uma casa com palavras de poetas e notas de músicos e gestos de dança. Assim com'assim, onde não chega a prata, revista-se de arte um espaço antigo, que ela fica logo a cheirar a novo, com aquele sorriso de gente sem rugas. E quem como eu está já farto delas, fica de alma renovada em folha.
Espreitei a tarde na d'Orfeu. Misturavam-se poemas com notas de música, cartazes, esfregões, tochas, pressa, sabões, flores, ansiedade, velas, máscaras, cultura e logo à noite?, momentos, tesouras, fios, põe-se o Torga na entrada, computadores programas, deixe ver que eu limpo, queremos ver o Torga a falar no bard'O, que lindo está o bard'O!, isto aqui tem dedo de quem sabe, já são oito horas?
Às 21, quando a noite já espantava o dia, juntam-se os artistas na rua, à espera de um mago. Ele chega à varanda e deixa cair novidades. Uma a uma, para que ninguém se empanturre de repente. Os espectáculos iam começar, respeitável público.
Vou seguindo artistas e público e por cima de mim chove já um poema, clamado e rufado do varandim do sótão. São o Bruno e o Bitocas a dizer e a batucar Craveirinha, ao lusco-fusco. A Castilho arranca assim uma página de Moçambique e larga-a no Já Conserto. E lá vão os espectadores escada a cima sacudir as palavras da selva africana e a testemunhar um encontro de instrumentos e de tocadores, que se saúdam com o Malhão e tanta alegria, tanta, que escorre para o público espantado. E este aí vai, a demandar salas e sotão, à procura da surpresa, que ora lhes sai no Roque do Lixo, ora na dança da Portela, ora na arte de dizer do Grupo Poético de Aveiro, orna nos clarinetes do Conservatório de Música de Águeda, ora na mestria de Ricardo, ora na palavra de Antero cantada por Luís Fernandes, ora na Festa dos Biombos, ora na beleza de Raquel do Cardume, que mais parecia a Eurídice perdida por Orfeu, ora na simpatia da Mafalda e do Paulo, que se ocupam do chá e dos biscoitos da assistência, ora num arlequim que, ainda da Portela, nos traz a arte de brincar em todo o tempo.
Aguarda o bard'O a sua vez, todo enfeitado de velas, heras e flores brancas e dos Momentos do Zé. E é a vez de Alexandra trazer novamente a poesia da Castilho.
Anda por ali uma criança de Moçambique, que a Cheia boquejou, mas de tão cheia poupou. Queda-se o público, que a voz da artista se modula no silêncio e na música de Luís Fernandes. E cresce a poesia no bard'O. Torga enobrece uma parede, a evocar Orfeu, o poeta que encantava árvores e bestas, com a sua lira. HáCáEcoHá prende-nos, envolve-nos até nos lenga-lenga, e seguimos os gestos, as perguntas, os risos, o emaranhado destes trovadores de poder encantatório da palavra. Guilherme Guerra continua a dizer poesia em nota altíssima. Abana, agride, choca , enternece, apaixona e grita-nos aos ouvidos. Mas ficávamos a ouvi-lo toda a noite. Agora são músicas da Castilho e oferecem-nos petites fleurs a toda a gente. Como as margaridas, que se espetaram numa tocha e nos amaciam a turbulência.
E no fim, é a festa tocada em saxofone, a guitarra , a bombo, a flauta, a palmas, a cantigas, a terminar uma noite em que escolas se juntaram num jardim. Pela mão de Orfeu.
Que ninguém se atreva a duvidar! Ali, na venda Nova, continua Orfeu a encantar.

Odete Ferreira