Nunca fui a Carvalhais senão durante o Andanças. Nunca noutro momento entrei naquele recinto. Mas não será difícil imaginar o que ali se passa no resto do ano. Estou a ver os jogadores do Carvalhais Futebol Clube festejar os golos com estranhas coreografias de “An dro” com os mindinhos entrelaçados bem treinados desde a pré-época, em Agosto.

Tal só é estranho para os adeptos da equipa visitante, que assistem estúpidos ao espectáculo a que os artistas da bola se prestam nesses momentos de alegria… Já o público da casa não só aplaude como acaba por largar os guarda-chuvas (o futebol é um desporto de inverno) e engrossa a dança que se cria espontânea ao longo do campo. Isto, até que o árbitro apite para a bola ao centro.

E tudo recomeça. A bola é lançada em corrida para o extremo-direito que, ali pela zona da tenda 1, dá um nó-cego de mazurka ao adversário que se torna par involuntário de tal bailar. Dali, cruza para a pequena-área, onde a tenda 6 sempre abarrota de gente a fazer muralha para a baliza. O lance é pelo ar para aproveitar uma cabeçada vitoriosa durante a “7 Saltos”. A baliza está à mercê, mas desta vez a bola perde-se pela linha de fundo depois de o fiscal-de-linha ter assinalado indevidamente um feed-back.
O adversário retoma o baile pela outra lateral. A propósito, é usual a descida dos extremos quando os adversários sobem pelo seu corredor, cumprindo os passos de uma “chapelloise” bem ensaiada.
As incidências do baile são agora disputadas junto do quarteto defensivo habitualmente formado pelas tendas 2 a 5, onde predomina a marcação homem-a-homem (na pré-época é treinada com variantes). A táctica de circulação está bastante bem treinada nesta zona do terreno, onde perduram por toda a época desportiva os imaginários sulcos feitos por andançantes de tenda em tenda, facto que acaba por guiar as jogadas de mais fino recorte e, sem que antes alguém tivesse pensado nisso, acabam por conduzir o Carvalhais às suas maiores vitórias.

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Acho que está na altura de os jornais desportivos começarem a fazer a cobertura do Andanças. É a causa de Carvalhais em Agosto ser caso de estudo.
Lembro-me quando, há dois ou três anos, o festival foi antecipado para o início de Agosto (realizava-se sempre na última semana) por causa, pasme-se, de fazer coincidir com os grandes festivais de Verão. Coincidir para preservar o ambiente – diziam -, evitando ser invadido por público que não o seu. Isto seria simplesmente impensável na cabeça de quem organize qualquer outro festival.
O Andanças é suficientemente único para ser esganado num rótulo. Aliás, não tente vender-se o Andanças nas revistas das especialidade. Está visto que é muito mais que um festival. O Andanças não joga em campeonatos e não disputa classificações (embora ganhe sempre!). É um festival que chega a todos na sua exacta medida, sendo a oferta de tal forma imensa que é impossível duas pessoas viverem o mesmo Andanças. O meu Andanças pessoal de 2005, por exemplo, magnificamente bem vivido, foi confrontado com igual número de concordâncias e discordâncias da boca dos meus mais próximos.
Criam-se espontaneamente momentos de folguedo nos lugares mais calmos, da mesma forma que os terreiros mais movimentados recebem, fora de horas, a mais pura das calmas.

E depois, a noite em que tocamos... Transportamos para cima do palco a proximidade criada em todas as outras horas com o público. Sem espanto, somos nós público daquele turbilhão de energia.

Praticamente nasceu em função do Andanças um grato trabalho de criação da d’Orfeu: Toques do Caramulo. O crescimento e estofo do espectáculo, é no retomar dos palcos do Andanças, ano após ano, que reencontra as suas sinergias e se lança em novo ciclo criativo. No percurso que trouxe Toques do Caramulo aos dias de hoje, desenvolveu-se um repertório vasto de recriações e cada vez mais ousados arranjos a partir do cancioneiro serrano, na ânsia de difundir um património musical retratado apenas nos convencionais formatos folclóricos. Danças e Toques do Caramulo, assim se chamava, surgiu em 2000 da parceria da d’Orfeu com um grupo folclórico – Associação Etnográfica Os Serranos - e incidia no repertório no seu estado puro, associado às próprias danças, com o qual chegámos a tocar para uma tenda vazia à mesma hora que a Rosa Paeda fazia abarrotar a tenda 6. Ainda não era o tempo das tendas cheias para nos dançar, como hoje acontece. A característica de ser dançado passou a reservar-se para o Andanças ou, quando muito, a outras iniciativas carimbo PX. Uma nova vocação de palco de Toques do Caramulo levou em 2005 à sua, até aí, mais carregada agenda, com dezenas de concertos por todo o país, tendo-se comprovado a capacidade de chegar a alguns importantes palco trad e world.
Foi no Andanças que este colectivo cresceu e ali viu marcadas as viragens do seu percurso, da mesma forma que assim terá seguramente acontecido com tantos outros. Falo de gente como Dazkarieh, Terrakota, Uxu Kalhus, Monte Lunai, Attambur, etc e tal. O que interessa mais perceber é que os grupos e os músicos continuam a fazer questão de ir ao Andanças, seja a que preço for. E o preço de ir ao Andanças é, como se sabe, com condições a léguas dos riders técnicos habituais, arriscar ter ali um dos melhores concertos do ano.

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Cá está o motivo porque ninguém quer falhar a pré-época. Todos querem um lugar na equipa para o resto da temporada. E nisso de contar com todos, a Pé de Xumbo sabe-a toda.
A PX é parceira por vocação, não consegue livrar-se desse impulso de partilha. Não sabemos ainda hoje como foi aquilo de, na primeira vez que alguns de nós subimos ao Andanças, ainda na Gralheira, darmo-nos conta de descontos para sócios da d’Orfeu (como constava no livrinho-programa dessa edição), sem que alguém da PX conhecesse, à data, uma alma de Águeda que fosse. Como não podíamos ter ficado, a partir daí, prisioneiros de muitas e boas andanças?


Texto de Luís Fernandes (Toques do Caramulo / d’Orfeu) no livro comemorativo de 10 anos do Andanças "Contra Danças Não Há Argumentos"