Ao cantar à desgarrada
Meu amor perdeu a voz
Comeu leitão da Bairrada
Cantou por ele e por nós
Meu amor perdeu a voz
Comeu leitão da Bairrada
Cantou por ele e por nós
Tararararararim, tararararararim, tararimram, tararararararim…
(Experimente o tom do Malhão e cante também!)
E as vozes de toda a gente a cantar e os corpos a abanar e as meninas de tantos olhos a rasarem-se de água e o amor a assomar e a esconder-se e rabecas e guitarras e concertinas e bombos e ferrinhos e vozes e aquele mar de gente, se calhar até o leitão ainda vivo, Tararararararim, tararararararim, tararimram, tararararararim… A seis de Setembro, na 1º de Maio, em Águeda, na Festa do Leitão.
Só Associações eram seis. Cinco em palco e uma no terreiro. Ora conte: Cancioneiro de Águeda, Conservatório de Música de Águeda, d’Orfeu, Orfeão de Águeda, Orquestra Típica de Águeda e o Público, que teria saltado para o estrado, se nos tivessem dado esse gostinho. Ali, um mar de artistas, de tocadores, bailadores e cantadores. Do lado de cá, uma boa casa de gente de fora e de dentro. Sem muros. Uns remexiam o pé, tanto que a minha vizinha da frente deu uns passos pra trás e deu-me uma canelada valente na Real Caninha. Outros castanholavam as palmas. Até o miúdo que rezingava, eu quero uma voltinha nos carrinhos, nã, nã, nã, eu quero uma voltinha nos carrinhos, nã, nã, nã, levou uma palmada da mãe. Toma lá que já almoçaste! A minha vizinha do lado gargarejava, “a amostra do pano é um retalinho, a amostra do pano é um retalinho”, quando, a meu ver, se lhe deslocou uma corda vocal e tive de a sacudir, senão ainda estragava o solo do Luís. Eu cá por mim acho que o público devia ter um maestro. Que nos harmonizasse os frenesis.
Haja um pouquinho de ordem no texto.
Ora bem. No fundo do palco, em pé, cantava o Orfeão, associação centenária, e ex libris de Águeda. Alguns elementos do Conservatório de Música, a Orquestra Típica e a d’Orfeu juntavam-se, sob a mesma batuta. Um atrevimento! Um encantamento! Agora o Cancioneiro, no estrado rente ao público, leve e perfeito, numa dança quase sem gravidade. A Susana a acordar a noite. Agora a Orquestra, bem ao centro, olhos postos no maestro a comedir aquele cachão de música. Depois a d’Orfeu, naquele desfile da cantiga antiga com perfume de outros sons, como um improviso de blue em boca de realejo.
As figuras políticas de relevo estiveram de pé, no meio do povo. Como deve de ser, diz esse povo, assim honrado por estar ao pé de um Ministro que, disseram-me depois, cantou o “Ó ti, ó tirititi, você diz que não, eu digo que sim”. Eu juro que não ouvi!
Se calhar estava naqueles momentos em que criei um nevoeiro para tudo que não fosse palco. Só ouvia os pés no tablado. Só reparava naquele arranjo de vozes, naquela harmonia de acordes, na ordem daquela orquestra agigantada, naquela réplica perfeita do Orfeão à d’Orfeu, naquele desafio entre a voz dos instrumentos e a voz do corpo, naquele sorriso gigante que soprava no palco, onde nada era dissonância. Naquele palco onde o folclore de Águeda não era património de ninguém, mas voltou a ser de todos. Por isso o público era de todos. Avós, pais, tios, filhos, primos, cunhados, sogros, padrinhos, gente de todas as afinidades e afinações, sentiram esta terra que há-de continuar a musicar a vida, mesmo que seja em cima de brasas.
Depois do Malhão, o público pediu mais e no fim uma troca de aplausos entre as seis associações, a festejar o reencontro.
E vim por aí acima, a ouvir a minha amiga, que repetia um discurso que parecia novo, “este espectáculo não pode ficar por Águeda. Isto é música do mundo. É também este património que temos de vender. São estes artistas que cantam e dançam Águeda em arraiais e casas de cultura. Espero que o poder os apoie e a Senhora do Livramento lhes acuda!” É que eleitos também são eles, os artistas. Os que aplaudimos nesta e noutras noites que aí vêm. Os que nos fazem levantar os braços e as vozes. Os que nunca nos defraudam!
*À pergunta: “O que é a felicidade”, uma mulher africana respondeu: “A felicidade? É a chuva.” No palco, se olhássemos bem a entrega, o riso, a paixão, havíamos de ouvir tantas vozes:
“A felicidade? É a música.”.
*Contou Madalena Barbosa, jornalista do Público, a 7 de Setembro de 2006.
Odete Ferreira