A
Guimarães Rosa
José Craveirinha
Mia Couto
Orlandinho Chale
José Rui Martins
para quem o abraço é o maior valor humano

- Mato não é mais lugar de menino. Todos os dias, vem soldado e mata. todos os dias morre bicho, morre palhota, morre gente, mas menino falta tempo de morrer. Amanhã, tu, mulher, prepare os trouxa, acomoda castanha de caju e amendoim pra presentear família e vais na casa de Jacinto, no Maputo.
Ele há-de bem acolher seu irmão.

Escutei seriedade de meu pai, do outro lado do adobe. Meu choro se enrola na esteira e se confundia com soluço escurecido de minha mãe.

- Mas ele é menino em demasia - era minha mãe a semear as lágrimas de palavra. Não conhece as sombra corrida de cidade grande. Só aprendeu mesmo vagar de cacimbo tonto, pressa de manhã e noite e fustigo de chuvada quente.

- Orlandinho tem muito esperto no cabeça dele. Jacintinho há-de ilustrar seu alfabeto, de bazar de cidade, de mercado, de machimbombo, de menina, de político, de dinheiro...e agora me deixe dormir, que amanhã é outro dia de permanecer.

E foi este conversar que me baleou no mundo.

Jacinto, meu sobrinho, me recebeu com abraço exclamatório e sua mulher me tratou de matumbinho. Minha sobrinha pôs olho de urubu no meu jaleco de mato e no meu pé gretado, floreado de sandália, mas depois de desfez em casquinada de riso.

- Tche, tio, tu me parece boneco de caderno enfastiado!

Me engasguei de gargalhada com palavra de menina que me via no livro, ao lado de acento, muito gravíssimo. Eu, que nunca fui escola. Me pareceu elogiosa a gozação de parente formiguenta.

Nos amanhã seguinte se desertou toda a casa do meu irmão. Glorinha, nome de minha cunhada, se ausentou bem cedo, repenicando dois beijo na boca de meu irmão e Joaninha se equipou de saco grande nas costas, me atirou dois olhos cheios de macaquice, jogando de sobe-e-desce, e se pendurou no bração de seu pai. De uma caixa de festança, (transitor, me ensinou meu irmão) saía tamborilar de marímbas e batuque de tambor.

- Pode ouvir rádio, todo tempo que você quiser simpatizou meu irmão.
- Tche, pá, me parece terreiro de nossa aldeia, em noite de felizmente.

Me abeirei da música e meu corpo se festejou de marrabenta que saía de todo o lugar de aparelho. Me confundia de onde podiam estar tocando, se transitor não era salão de baile. Me exclamava! Como se metia artista, numa caixa tão pequena? No mato, tinha música de passaroco, conversa fiada de macaco, e, em noite de fogueira grande, matraqueio de tambor, crepitança de fogueira, grito de guerreiro, apito de bailarino, canto de mulher, que folhedo espanejava no silêncio. Me transportei até meu sertão de nascimento e me embalei com olhos de Pascoalina, menina de minha criação e de corpo muito adamado. Interrompia meu deambular, voz de homem, comerciando sapato de luxo. Toda a hora prosseguiu adormecida de festejo entrouxado.

Todos dia, a casa ora se silenciava, ora se povoava de corrida de Joaninha e da chatiação de Glorinha. Jacinto me deixava sozinho e eu me confundia com as sombra.

Um dia, me resolvi visitar rua grande, essa que se balança, perfumada em jacarandá e à noite se estreleja na baía. Nos cafés, se formigava de gente. Me atraiu tamanha trepidação. ninguém se importou com minha boa-noite e me concentrei no rádio grande de onde saía tombazana, rapariga mito dengosíssima, pavoneando coxa torneada e gigantão, com voz melosa de abacaxi. Se transitor me parecia macumba de feiticeiro velho, me assombrei superiormente, com corpo se alinhado em transparência de televisor. Mundo de mato era coisa e antigamente, acontecimento de facto mesmo, se acontece, acontece, não parece! Se Jacinto tivesse televisão, eu podia espreitar por todas as traseiras daqueles mundo ambulante e descobria mesmo o mistério de gente de fantasia. Meu irmão comprava, se Glorinha pedisse. me interrompi de lembrança de parente. Meu irmão se havia de perguntar, onde eu estaria deambulando. Voltei no bairro, caminhando a noite e me enluarando de candeeiro no poste. me esperava palavra aguda de aviso. Na cama, meu sonho se imaginou de rio saindo dos bordejo, árvore do mato acenando guiso e batucando, capim na queimada festejando seu baile vermelho, guerreiro fermentando seus salto, missanga cabriolando em peito de bailarina, flor de cajueiro odorando mulher e todo sertão se metendo em televisão. Quando Pascoalina ia-se rebolar nos meus olho, uma corrida de Joaninha entrou no sonho e me acordou com sonorento aguaceiro.

Mas todo o dia se inundou meu pensamento, de mistério. O rádio me questionava ainda, mas não espelhava pessoa. E hoje ele se roufenhava, engasgando barulho. Jacinto me recomendou que o levasse na oficina, que seu Tomazinho era seu amigo e havia de o descomplicar. Levei o aparelho no consertador e fiquei olhando maningâncias de oficineiro. Bem que enfiava os olhos no parafuso, nas pilha, nas peça redonda encaixando em tubo, mas não via sítio, onde coubesse voz. Minha cabeça se desfazia em perguntações.

Meu irmão ignorava meu analfabetismo e eu regressei na cidade de jacarandá. Eu queria mesmo aprender feitiço de televisão. Me carreguei de atenção e me iluminei de ideia nova.

Eram férias de Joaninha e ela se companheirava de brincadeira com outras menina. As convidei no meu quarto, se acomodei em branquinho, e me deslocava na varanda, por trás do vidro, acenando e gesticulando, me desfazendo de rir, como fazia artista de televisão. Joaninha, nos primeiro minuto, se intervalou de risada e me olhava com olhar de desentendimento, mas amiguinha começou a acenar, a bater palma, a se escangalhar de rir com minhas momice e Joaninha se emparceirou no aplauso. Eu me empolgava e aumentava minha teatrice, mudando minha personagem, compondo minha história.

Menina me pedia agora espectáculo diário e eu enchia meu tempo compondo caso. Joaninha ficava sendo conhecida como tendo tio de historiação. As palma de menina me levaram a construir meu teatrinho de caixa de cartão e levar no mercado, para entreter vendedeira.

Comecei contando história para mulher.

- Tche, Orlandinho, põe pimenta na janta!

E mulherio se ria desbocado, pedindo amor de invenção. No fim de cada sessão, moedas choviam no meu prato e eu fui investindo no meu teatro ambulante. Um dia, um amigo me levou no cinema e me maravilhei com história de amor. Se eu contasse filme no mercado, meu aplauso ia crescer. De noite, me acudiam personagens, que se beijavam, se rebolavam, se ansiavam de ais e de uis e se queriam meter em filme de adulto. Decidi que tinha de arrnajar cortininha, contar minha história no escondido da sombra, lhe dar palavra de namoro e suspiração de maor. Vendedeira me pedia sempre história mais atrevida. Público crescia, quando o filme era de caso nocturno.Minha falta de dinheiro foi-se minguando. Comprei altifalante, para espalhar mais sonoro na assistência.

Resolvi que já podia morar só comigo, em quarto de rua grande. Glorinha se aliviou de seu olhar de embondeiro enfastiado, Jacinto me questionou se meu teatro era substantivo e eu lhe disse que sim, me sustentava, me vestia e me pagava acomodação. Só Joaninha pranteou um choro pequenino por seu artista parente.

E agora tenho uma banca no mercado. Vendo fantasia barata. Me chamam de Orlandinho, o do teatro de sombras. um dia, artista grande passou. Parou, ouviu meu filme de adulto, me chamou de companheiro, me convidou no Potugal. Tche pá, que mais havia de querer teatreiro de cartão? Assim fiz um amigão, que me trouxe no Tondela, no Águeda, emtanta terra bonita. Nome do amigão é de José Rui Martins. Também teatrei no Espanha, mas onde me sinto irmão é aqui mesmo, em Portugal, na terra de me entender, de me gostar, na capital, na ACERT, na d'Orfeu, onde alguém queira me ver e me ouvir, num teatro de cartão. Meu nome se apresentou no começo da história: Orlandinho Chale!

Me desculpem arrasoado sem letras, mas eu ser muito pouquíssimo escola!

Odete Ferreira